sexta-feira, 10 de março de 2017

Fundamentação, Aprendizagem e Empirismo


Programar uma jornada de pesca requer alguns cuidados, o objetivo é sempre evitar qualquer coisa que possa nos atrapalhar no exato momento em que nos encontramos frente a frente com o peixe (supostamente, pois muitas das vezes não conseguimos vê-lo), e para que consigamos pôr em prática tudo aquilo que acumulamos de conhecimento, aplicando táticas e estratégias cuidadosamente traçadas, dispondo de todo o material que previamente julgamos ser adequado (por isso o levamos em nossa tralha) e conquistemos aquela tão esperada captura.

Sair para uma jornada de pesca, seja ela de poucas horas ou de vários dias, requer planejamento e organização, dessa forma as chances de sucesso aumentam significativamente e o famigerado e sempre presente "fator sorte" não terá tanta influência no resultado da pescaria, frustando por muitas vezes meses de expectativa. E mesmo o mais imediatista dos pescadores, após alguns planejamentos de pesca, certamente passará a gostar dessa importantíssima etapa da jornada de pesca, pois começamos a pescar no instante em que iniciamos o planejamento da pescaria.


Truta capturada junto a um paredão de pedra, ao lado de um turbilhão de água
de uma cachoeira, um ponto que poucos relatam como bom pra pesca

Tudo começa com a escolha da modalidade mais adequada (ou preferida) e com o estudo teórico de seus fundamentos. No caso da pesca com mosca (citada nesta postagem como exemplo), estamos falando entre outras coisas, da mecânica dos arremessos, da montagem do equipamento, dos hábitos e comportamento das espécies que objetivamos capturar, e todos os outros fatores que podem de alguma forma influenciar diretamente o resultado da pescaria, como por exemplo o clima, as marés, o volume dos rios e lagos, a pressão barométrica, e outros tantos.

Pra alguns desses quesitos, a fundamentação por si só pode não ser suficiente, desse modo precisaremos também de treinamento prático, como é o caso dos arremessos, a confecção dos nós e montagem do equipamento, a identificação de qual alimento o peixe está comendo, só para citar alguns. O treino fará com que o mosqueiro lide com essas questões de forma quase automática e o liberará para voltar sua atenção aos aspectos situacionais que se apresentam somente naqueles momentos em que ele está no local da pescaria.

Trecho escarpado  de um rio que exige estudo e planejamento pra ser explorado 

Trecho em corredeira de um rio, escolher a mosca adequada demanda observação  

A primeira vez em um determinado local de pesca, pode ser mais adversa, mas será certamente muito enriquecedora, pois nos dará informações sobre o local e impressões que somente quem já esteve naquele ponto poderia perceber. Mesmo tendo dados fornecidos por outras pessoas, muito do que se depreende se perde na transmissão de um para outro, fora o fato das pessoas prestarem atenção em diferentes características de um mesmo lugar. Por isso é importante manter um caderninho com anotações sobre o quer for observado e as experiências vividas durante as pescarias, a aprendizagem no local da pesca é o mais valioso conhecimento adquirido pelo mosqueiro, pois não está em nenhum livro e dificilmente poderá ser repassado em sua totalidade para outra pessoa. 

Dessa forma, quando o mosqueiro retornar àquele local de pesca, de antemão já saberá o que deu ou não certo, e poderá planejar sua jornada de pesca cada vez melhor e de forma mais eficiente. Saber onde estão os poços mais ou menos profundos em um rio, onde existem lages de pedra naquela região, fará toda a diferença na aproximação do local; saber que tipo de alimento ocorre naquela área ajudará de sobremaneira na escolha das moscas a serem levadas ao local, os horários que funcionam melhor, que trabalho de movimentação aplicar em função das variáveis daquele local (transparência e cor da água, temperatura, atividade dos peixes, etc).

Coleta entomológica local, ajuda crucial na escolha da mosca  

Às vezes a natureza ajuda a dirimir a dúvida sobre qual mosca usar

Mesmo já tendo estudado e praticado os fundamentos com disciplina, voltado algumas vezes naquele local, registrado suas características e experiências vividas, algumas vezes (não raramente) as coisas não transcorrem como esperaríamos e gostaríamos. Nessas situações, ainda que nos baseando no conhecimento adquirido, torna-se primordial a experimentação. O empirismo direcionado pela aprendizagem pode gerar um novo ponto de vista e um resultado surpreendente em um mesmo local anteriormente tido como pouco produtivo.

Uma grande terrestrial produzindo bom resultado em um momento do dia
no qual tradicionalmente pequenas caddis são a escolha mais óbvia

Quando nem mesmo uma escolha ponderada surtir efeito, pensar "fora da caixa" muitas vezes pode ser o diferencial naquele momento em que a atividade dos peixes diminui ou mesmo cessa. Cores improváveis ou padrões inusitados de moscas, apesar de irem totalmente de encontro à fundamentação e aprendizagem não devem ser descartadas e o que à primeira vista talvez pareça um absurdo, pode-se revelar como uma grata surpresa. Como exemplo, cito os principais grupos de insetos que em sua maioria absoluta compõem a dieta das trutas em quase todo o território global: mayflies, stoneflies, caddisflies e midges. É praticamente impossível não encontrar na caixa de moscas de um pescador, pelo menos uma dúzia de padrões de moscas representativos de 2 ou 3 dessas ordens de insetos, a estatística de capturas, o estudo do conteúdo estomacal e a observação dos peixes podem quase que determinar com exatidão quais moscas vão funcionar e qualquer outra escolha seria perda de tempo ou mesmo que produzam algum resultado, poderia ser questionável se outro padrão (mais tradicional), não seria mais eficiente. Mas nem sempre essa afirmação pode ser totalmente verdadeira.

Imitação de percevejo (shield beetle), receita do mestre Davie McPhail

Um inseto infrequente na dieta das trutas, resultando em diversas capturas


Diante de situações inusitadas ou inesperadas, como por exemplo águas turvas consequência de chuvas recentes, a frustração ao chegar no local de pesca pode ser tamanha que faça o mosqueiro querer dar meia volta. Mas talvez esse seja exatamente o momento ideal para deixar de lado a pressão de ter que fisgar um peixe (quase uma obrigação em condições normais) e fazer valer toda a teoria, treino e aprendizado adquirido e somar a isso um pouco de experimentação. Como fazer com que o peixe consiga enxergar a mosca em condições tão baixas de visibilidade? Já que a água está esbranquiçada, que tal experimentar uma mosca na cor preta? E já que a visualização está prejudicada, porque não tentar alguma coisa mais volumosa? E ainda, já que a nitidez não está boa, talvez um trabalho mais lento da mosca forneça mais tempo pro peixe perceber sua presença, parece razoável? Bem, vejamos o resultado da união coordenada dessas três observações em uma estratégia confiante e otimista, mesmo diante de um cenário um tanto desolador:

Situação de água turva com pouca visibilidade 

Uma mosca com bom contraste visual e volume, trabalhada lentamente salvaram a pescaria

O recado final é que não há como separar a fundamentação da aprendizagem e do empirismo, esses três métodos em conjunto tornarão as jornadas de pesca cada vez mais previsíveis, eficientes e prazerosas ao mosqueiro, o tornarão mais apto a superar as diversidades que se apresentam e reduzirão de sobremaneira a influência do "fator sorte" nas próximas pescarias.

Grande Abraço



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