sexta-feira, 24 de março de 2017

As atrativas curvas da Hydropsyche Caddis


O gênero Hydropsyche faz parte de um grupo particularmente interessante de representantes da ordem Trichoptera (Caddis), as tecedoras de redes (net-spinning caddisflies). Os indivíduos desse gênero constroem moradias (retiros) em forma de túneis em pedras ou troncos submersos, utilizando como matéria-prima fios de seda muito parecidos com os produzidos por algumas espécies de lagartas, pedaços de plantas e de pedras. Na parte traseira desses refúgios fixam uma espécie de rede de espera (semelhantes às teias de aranhas) com a qual capturam os alimentos (algas, pequenos invertebrados, material orgânico em decomposição) trazidos pela correnteza da água (locais onde habitam e que são ideais para essa técnica de obtenção de comida).

Swimming Hydropsyche Larvae, curvas irresistíveis aos peixes

Durante a fase de larva são extremamente territorialistas, defendendo com agressividade seus refúgios e redondezas, não sendo incomum conflitos entre indivíduos lutando por espaço. A movimentação para a defesa do território, para para a coleta do alimento que se prende às redes e para reparos em seus abrigos, as expõem constantemente às correntezas dos locais onde residem, deixando-as muitas das vezes à deriva e à mercê dos peixes que também estão posicionados nos fluxos de água esperando por alimento.


Larvas de Hydropsyche capturadas em duas coletas entomológicas no mesmo local 

Possuem corpo cilíndrico e longilíneo dividido em cabeça, tórax e abdômen, sendo este último representativo de 2/3 a 4/5 de seu comprimento total. Apresentam variação de coloração indo desde o cinza, até o amarelo passando pelo verde e marrom, a cabeça e o tórax via de regra são negros ou marrom-escuros, com 3 pares de patas de mesma coloração. Comumente assumem uma postura curvada em forma senoidal, principalmente quando são carregadas pela correnteza e se contorcem serpenteando o corpo na tentativa de "nadar". Esse movimento ondulatório as torna ainda mais atrativas aos peixes que as espreitam, razão pela qual foi feita a escolha do modelo específico de anzol para essa receita, uma variação da Hydropsyche Larvae criada pelo mestre Oliver Edwards

Pré-Montagem:

Apesar de já existirem materiais próprios para essa montagem, é perfeitamente possível adaptar alguns elementos da receita com pouco esforço e nenhum prejuízo, como por exemplo no caso da folha de chumbo, da qual utiliza-se uma fina tira de aproximadamente 1,5 milímetros, que será substituída por um pedaço de fio de chumbo tradicional, achatado com um pequeno martelo. 

Use um pequeno martelo para achatar um pedaço de fio de chumbo 

Originalmente, o abdômen dessa mosca é recoberto com Nymph Skin, um filete de látex translúcido com 3 milímetros de largura. Em seu lugar podemos usar sem problemas, uma tira recortada a partir de uma luva de procedimento cirúrgico. Esse material é bastante resistente, fácil de se trabalhar e pode ser colorizado sem esforço com a ajuda de um marcador permanente.

A partir de uma luva cirúrgica, recorte uma tira para recobrir o abdômen da mosca 

Vejamos a seguir a lista de materiais utilizados nessa variante e o passo a passo da montagem.

Material Básico:
  • Anzol para ninfas tipo Swimming #14 - #10 , nessa montagem, Partridge Swimming Nymph #14
  • Fio de atado 8/0, branco
  • Folha de Chumbo
  • Nymph Skin, natural
  • Pena (pluma) de Perdiz Cinzenta (Hungarian Partridge)
  • Fibras de Pena de Avestruz, natural
  • Fibras de Pena de Faisão, natural
  • Marcador Permanente (laranja e preto)


Passo a Passo:

1º Coloque na morsa um anzol com a farpa amassada. Para essa receita não será necessário iniciar o atado com uma base de fio de atado, pois a fita de chumbo cobrirá quase totalmente a haste.


2º Enrole a fita de chumbo no anzol, iniciando pela parte superior da curva do gap, percorrendo toda a haste até bem próximo do olho. Reserve um pequeno espaço para terminar a amarração dos materiais e formar a cabeça da mosca.


3º Enrole o fio de atado por cima do chumbo, preenchendo os gaps com mais voltas do thread de forma a deixar o subcorpo mais uniforme. Não há necessidade de muito esmero, pois o nymph skin cobrirá tudo, mas o resultado final será melhor tanto quanto o subcorpo estiver mais nivelado.


4º Procure dentre as penas de perdiz cinzenta, ou outro pássaro, uma pluma para ser usada na confecção das brânquias da larva. 


5º Posicione a pluma em cima do chumbo, na parte superior da curva do gap, deixando uns 2 centímetros livres para trás. Fixe com o fio de atado, enrolando até o meio da haste e corte o excesso.


6º Segure a parte livre da pluma e apare-a, deixando somente um pequeno tufo (uns 5 ou 6 milímetros) para formar as brânquias da larva.


7º Separe três fibras de pena de avestruz e prenda-as por baixo da haste do anzol, enrolando o fio de atado até o ponto onde está o chumbo.


8º Nesse mesmo ponto fixe a tira de nymph skin, posicionando-a na parte de cima da haste do anzol.


9º Faça uma alça com o fio de atado medindo aproximadamente 7 centímetros de comprimento, trave a alça com umas três voltas, deixa-a solta nesse ponto e avance com o thread até o olho do anzol.


10º Enrole a tira de nymph skin cuidando para que cada volta se sobreponha à volta anterior. 


11º Siga dessa forma até pouco antes do olho do anzol. Trave com algumas voltas do fio de atado e corte o excesso. Retorne com o fio de atado para trás, até aproximadamente 1/3 do comprimento da haste do anzol, tomando o cuidado para que cada volta do fio de atado fique encaixada nos segmentos deixados pela tira de nymph skin.


12º Corte uma das pontas da alça. Puxe as fibras de pena de avestruz pra frente, pela parte de baixo do corpo da mosca e com o pedaço de fio de atado que antes era a alça, siga enrolando e prendendo as fibras de avestruz, até o ponto onde está o thread do bobbin. Mais uma vez, cuide para que cada volta do fio de atado fique encaixada nos segmentos deixados pela tira de nymph skin.


13º Finalize a fixação das fibras de avestruz e o thread auxiliar (da alça) usando o fio de atado do bobbin. Corte o excesso do thread auxiliar e o excesso das fibras de avestruz.


14º Segure uma pena de faisão pela raque em uma das mãos, separe 6 fibras com a outra mão e arranque-as com um puxão no plano perpendicular à raque da pena. Dessa forma, na base de cada fibra se formarão pequenos ganchos.


15º Gire a mosca e na primeira volta (segmento) após a fibra de avestruz, prenda 2 das fibras de faisão, deixando os ganchos formados no arranquio voltados para frente. Posicione as fibras para os lados do corpo da mosca, porém mantendo-as ainda na parte de baixo. 


16º Puxe delicadamente cada fibra até que estejam com um tamanho pouco maior que as fibras das penas de avestruz. Tensione o fio de atado e avance um segmento (volta) para frente.


17º Repita o passo anterior mais duas vezes, cuidando para que cada par de pernas seguinte tenha um comprimento ligeiramente menor que o par anterior. Avance até imediatamente antes do olho do anzol e com algumas voltas do fio de atado, faça uma pequena cabeça, dê o nó de finalização e aplique uma gota de cola para travar.


18º Gire novamente a mosca e com o marcador permanente laranja, pinte o dorso da mosca, desde o início do abdômen até o tórax (essa divisória coincide com o segmento onde foi fixado o primeiro par de pernas).


19º Com o marcador permanente preto, pinte o tórax e a cabeça da mosca (somente na parte superior). Aplique uma gota de verniz (esmalte ou head cement) na cabeça da larva e está finalizado.



Variantes:

As variações podem incluir materiais alternativos, como os apresentados na pré-montagem, mas basicamente se resumirão às cores da cabeça e tórax e do abdômen, para que esteja de acordo com os indivíduos coletados no local de pesca.

Como trabalhar a isca:

Além da clássica forma de utilizar uma ninfa montada ao final do leader, essa mosca comumente é usada como a ninfa do meio (a mais pesada) em uma montagem do tipo Czech Nymphing. Em ambos os casos, a técnica mais usual para pescar é upstream com pouca linha (praticamente só o leader e um metro da linha de mosca pra fora da vara), varrendo todo o entorno à frente do pescador. É recomendável utilizar um indicador de fisgada bastante discreto (delgado), que em função da curta distância, será perfeitamente visível.


Montagem Czech Nymphing com strike indicator

Grande Abraço

sexta-feira, 10 de março de 2017

Fundamentação, Aprendizagem e Empirismo


Programar uma jornada de pesca requer alguns cuidados, o objetivo é sempre evitar qualquer coisa que possa nos atrapalhar no exato momento em que nos encontramos frente a frente com o peixe (supostamente, pois muitas das vezes não conseguimos vê-lo), e para que consigamos pôr em prática tudo aquilo que acumulamos de conhecimento, aplicando táticas e estratégias cuidadosamente traçadas, dispondo de todo o material que previamente julgamos ser adequado (por isso o levamos em nossa tralha) e conquistemos aquela tão esperada captura.

Sair para uma jornada de pesca, seja ela de poucas horas ou de vários dias, requer planejamento e organização, dessa forma as chances de sucesso aumentam significativamente e o famigerado e sempre presente "fator sorte" não terá tanta influência no resultado da pescaria, frustando por muitas vezes meses de expectativa. E mesmo o mais imediatista dos pescadores, após alguns planejamentos de pesca, certamente passará a gostar dessa importantíssima etapa da jornada de pesca, pois começamos a pescar no instante em que iniciamos o planejamento da pescaria.


Truta capturada junto a um paredão de pedra, ao lado de um turbilhão de água
de uma cachoeira, um ponto que poucos relatam como bom pra pesca

Tudo começa com a escolha da modalidade mais adequada (ou preferida) e com o estudo teórico de seus fundamentos. No caso da pesca com mosca (citada nesta postagem como exemplo), estamos falando entre outras coisas, da mecânica dos arremessos, da montagem do equipamento, dos hábitos e comportamento das espécies que objetivamos capturar, e todos os outros fatores que podem de alguma forma influenciar diretamente o resultado da pescaria, como por exemplo o clima, as marés, o volume dos rios e lagos, a pressão barométrica, e outros tantos.

Pra alguns desses quesitos, a fundamentação por si só pode não ser suficiente, desse modo precisaremos também de treinamento prático, como é o caso dos arremessos, a confecção dos nós e montagem do equipamento, a identificação de qual alimento o peixe está comendo, só para citar alguns. O treino fará com que o mosqueiro lide com essas questões de forma quase automática e o liberará para voltar sua atenção aos aspectos situacionais que se apresentam somente naqueles momentos em que ele está no local da pescaria.

Trecho escarpado  de um rio que exige estudo e planejamento pra ser explorado 

Trecho em corredeira de um rio, escolher a mosca adequada demanda observação  

A primeira vez em um determinado local de pesca, pode ser mais adversa, mas será certamente muito enriquecedora, pois nos dará informações sobre o local e impressões que somente quem já esteve naquele ponto poderia perceber. Mesmo tendo dados fornecidos por outras pessoas, muito do que se depreende se perde na transmissão de um para outro, fora o fato das pessoas prestarem atenção em diferentes características de um mesmo lugar. Por isso é importante manter um caderninho com anotações sobre o quer for observado e as experiências vividas durante as pescarias, a aprendizagem no local da pesca é o mais valioso conhecimento adquirido pelo mosqueiro, pois não está em nenhum livro e dificilmente poderá ser repassado em sua totalidade para outra pessoa. 

Dessa forma, quando o mosqueiro retornar àquele local de pesca, de antemão já saberá o que deu ou não certo, e poderá planejar sua jornada de pesca cada vez melhor e de forma mais eficiente. Saber onde estão os poços mais ou menos profundos em um rio, onde existem lages de pedra naquela região, fará toda a diferença na aproximação do local; saber que tipo de alimento ocorre naquela área ajudará de sobremaneira na escolha das moscas a serem levadas ao local, os horários que funcionam melhor, que trabalho de movimentação aplicar em função das variáveis daquele local (transparência e cor da água, temperatura, atividade dos peixes, etc).

Coleta entomológica local, ajuda crucial na escolha da mosca  

Às vezes a natureza ajuda a dirimir a dúvida sobre qual mosca usar

Mesmo já tendo estudado e praticado os fundamentos com disciplina, voltado algumas vezes naquele local, registrado suas características e experiências vividas, algumas vezes (não raramente) as coisas não transcorrem como esperaríamos e gostaríamos. Nessas situações, ainda que nos baseando no conhecimento adquirido, torna-se primordial a experimentação. O empirismo direcionado pela aprendizagem pode gerar um novo ponto de vista e um resultado surpreendente em um mesmo local anteriormente tido como pouco produtivo.

Uma grande terrestrial produzindo bom resultado em um momento do dia
no qual tradicionalmente pequenas caddis são a escolha mais óbvia

Quando nem mesmo uma escolha ponderada surtir efeito, pensar "fora da caixa" muitas vezes pode ser o diferencial naquele momento em que a atividade dos peixes diminui ou mesmo cessa. Cores improváveis ou padrões inusitados de moscas, apesar de irem totalmente de encontro à fundamentação e aprendizagem não devem ser descartadas e o que à primeira vista talvez pareça um absurdo, pode-se revelar como uma grata surpresa. Como exemplo, cito os principais grupos de insetos que em sua maioria absoluta compõem a dieta das trutas em quase todo o território global: mayflies, stoneflies, caddisflies e midges. É praticamente impossível não encontrar na caixa de moscas de um pescador, pelo menos uma dúzia de padrões de moscas representativos de 2 ou 3 dessas ordens de insetos, a estatística de capturas, o estudo do conteúdo estomacal e a observação dos peixes podem quase que determinar com exatidão quais moscas vão funcionar e qualquer outra escolha seria perda de tempo ou mesmo que produzam algum resultado, poderia ser questionável se outro padrão (mais tradicional), não seria mais eficiente. Mas nem sempre essa afirmação pode ser totalmente verdadeira.

Imitação de percevejo (shield beetle), receita do mestre Davie McPhail

Um inseto infrequente na dieta das trutas, resultando em diversas capturas


Diante de situações inusitadas ou inesperadas, como por exemplo águas turvas consequência de chuvas recentes, a frustração ao chegar no local de pesca pode ser tamanha que faça o mosqueiro querer dar meia volta. Mas talvez esse seja exatamente o momento ideal para deixar de lado a pressão de ter que fisgar um peixe (quase uma obrigação em condições normais) e fazer valer toda a teoria, treino e aprendizado adquirido e somar a isso um pouco de experimentação. Como fazer com que o peixe consiga enxergar a mosca em condições tão baixas de visibilidade? Já que a água está esbranquiçada, que tal experimentar uma mosca na cor preta? E já que a visualização está prejudicada, porque não tentar alguma coisa mais volumosa? E ainda, já que a nitidez não está boa, talvez um trabalho mais lento da mosca forneça mais tempo pro peixe perceber sua presença, parece razoável? Bem, vejamos o resultado da união coordenada dessas três observações em uma estratégia confiante e otimista, mesmo diante de um cenário um tanto desolador:

Situação de água turva com pouca visibilidade 

Uma mosca com bom contraste visual e volume, trabalhada lentamente salvaram a pescaria

O recado final é que não há como separar a fundamentação da aprendizagem e do empirismo, esses três métodos em conjunto tornarão as jornadas de pesca cada vez mais previsíveis, eficientes e prazerosas ao mosqueiro, o tornarão mais apto a superar as diversidades que se apresentam e reduzirão de sobremaneira a influência do "fator sorte" nas próximas pescarias.

Grande Abraço